Com licença poética
Quando
nasci um anjo esbelto,
desses
que tocam trombeta, anunciou:
vai
carregar bandeira.
Cargo
muito pesado pra mulher,
esta
espécie ainda envergonhada.
Aceito
os subterfúgios que me cabem,
sem
precisar mentir.
Não
tão feia que não possa casar,
acho
o Rio de Janeiro uma beleza e
ora
sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas,
o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro
linhagens, fundo reinos
—
dor não é amargura.
Minha
tristeza não tem pedigree,
já a
minha vontade de alegria,
sua
raiz vai ao meu mil avô.
Vai
ser coxo na vida, é maldição pra homem.
Mulher
é desdobrável. Eu sou.
-Adélia
Prado
Seu
estilo literário se caracteriza pela religiosidade católica e pelo olhar do
feminino sobre a vida e aspectos do cotidiano, colocando o papel da mulher
sempre como o principal em suas poesias, contos e crônicas. Destaca-se ainda
seu estilo por uma linguagem simples e coloquial e pela valorização e discussão
de temas ligados à religiosidade, à vida, às vivências e experiências e ao
cotidiano de sua cidade, Divinópolis.
Sobre
a fonte de sua inspiração, Adélia diz:
“ Eu só tenho o
cotidiano e meu sentimento dele.
Não sei de alguém
que tenha mais. O cotidiano em Divinópolis é igual ao de Hong Kong, só que
vivido em português”.
O poeta cerebral tomou café sem
açúcar
e foi pro gabinete concentrar-se.
Seu lápis é um bisturi
que ele afia na pedra,
na pedra calcinada das palavras,
imagem que elegeu porque ama a
dificuldade,
o efeito respeitoso que produz
seu trato com o dicionário.
Faz três horas que já estuma as
musas.
O dia arde. Seu prepúcio coça.
Uma vez, quando eu era menina, choveu
grosso
com trovoadas e clarões, exatamente
como chove agora.
Quando se pôde abrir as janelas,
as poças tremiam com os últimos
pingos.
Minha mãe, como quem sabe que vai
escrever um poema,
decidiu inspirada: chuchu novinho,
angu, molho de ovos.
Fui buscar os chuchus e estou
voltando agora,
trinta anos depois. Não encontrei
minha mãe.
A mulher que me abriu a porta riu de
dona tão velha,
com sombrinha infantil e coxas à
mostra.
Meus filhos me repudiaram
envergonhados,
meu marido ficou triste até a morte,
eu fiquei doida no encalço.
Só melhoro quando chove.
Adélia
Prado diz que tudo que escreve já está escrito em duas bíblias. A primeira é a
bíblia judaico-cristã, a Bíblia Sagrada, que a auxilia a se religar com o deus
cristão, com sua religião e religiosidade e orienta os seus passos. A segunda
bíblia é a obra Grande Sertão: Veredas, do escritor mineiro João Guimarães Rosa
- um dos maiores escritores brasileiros do século XX ligado à terceira geração
modernista -, que a orienta na literatura e na sua busca por escrever sobre a
simplicidade da vida e do cotidiano.
Assim,
o legado de Adélia Prado segue inspirando muitas poetas e muitos poetas a
escreverem e a continuarem a escrever, assim como segue emocionando seus
leitores e admiradores, com seu estilo belo, livre e simples.
Dentre
outras obras da poeta, estão: Solte os
cachorros (1979); Cacos para um
vitral (1980); Terra de Santa Cruz
(1981); Os componentes da banda (1984); O
pelicano (1987); A faca no peito (1988); O homem da mão seca (1994); Manuscritos de Felipa (1999); Oráculos de maio (1999); Prosa reunida (1999); Filandras (2001).
“O que a memória
ama, fica eterno.
Te amo com a
memória imperecível”.
-Adélia Prado
Referências
3 POEMAS de Adélia Prado, homenageada do Jabuti 2020. Grupo editorial Record, 2020. Disponível em:< https://www.record.com.br/3-poemas-de-adelia-prado-homenageada-do-jabuti-2020/>. Acesso em: 27 de fev. de 2021.
ADÉLIA Prado. Enciclopédia Itaú Cultural, 2017. Disponível em: <https://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa3596/adelia-prado>. Acesso em: 27 de fev. de 2021.
MELLO, Rafaela de Campos. “Inspiração é murmúrio de fonte divina”, defende Adélia Prado. casa.com.br, 2016. Disponível em:< https://casa.abril.com.br/bem-estar/inspiracao-e-murmurio-de-fonte-divina-defende-adelia-prado/>. Acesso em: 27 de fev. de 2021.
LÓPEZ, Maria Laura. Evento mostra influência de Guimarães Rosa em Adélia Prado. Jornal da USP, São Paulo, 08 de jun. de 2018. Disponível em: <https://jornal.usp.br/cultura/evento-debate-influencia-de-guimaraes-rosa-em-adelia-prado/ >. Acesso em: 27 de fev. de 2021.
PRADO, Adélia. Filandras. 7.ed. Rio de Janeiro: Editora Record, 2014.
REBINSKI, Luiz. Sem ponto final. Jornal da Biblioteca Pública do Paraná, 2015. Disponível em: <https://www.bpp.pr.gov.br/Candido/Pagina/Entrevista-Adelia-Prado>. Acesso em: 27 de fev. de 2021.
Texto produzido por:
Keversson Moura
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